Na epístola de Tiago, encontramos a seguinte citação em relação a Jó: “Vocês ouviram a respeito da paciência de Jó e sabem como o Senhor fez com que tudo acabasse bem; porque o Senhor é cheio de misericórdia e compaixão” (Tg 5.11).
De que tipo de paciência Tiago estava falando? Digo isso porque, diante de todo sofrimento que estava enfrentando, Jó disse: “Por isso, não reprimirei a minha boca. Na angústia do meu espírito, falarei. Na amargura da minha alma, eu me queixarei” (Jó 7.11).
Fez isso mais de uma vez. Então, que tipo de paciência é essa que Tiago diz que Jó possuía?
A construção de que o crente, por ser crente, deve aceitar todo tipo de sofrimento e adversidade da vida bem quietinho, caladinho, resignado, porque se expressar o que está sentindo estará pecando, demonstrando falta de fé e até mesmo blasfemando contra Deus, ainda está, infelizmente, presente na vida de muitos crentes. Por quê? Porque, durante muitos anos — ainda hoje — essa mensagem distorcida e antibíblica tem sido ensinada.
Ainda hoje, em muitos contextos, a fé tem sido usada como tampão e não como forma de expressão. Fé que cala, que remói, que engole sentimentos e emoções não é fé, no sentido bíblico da palavra. Por isso que Jó, mesmo confiante em Deus, falou e não escondeu o que estava sentindo. Ele disse: “Estou cansando de viver. Darei livre curso à minha queixa, falarei da amargura da minha alma” (Jó 10.1).
Aprendemos com Jó que falar do que sentimos não é falta de fé.
Atendo muitas pessoas, e já ouvi de algumas a seguinte expressão: “Não sei se devo falar isso, porque pode parecer falta de fé e confiança em Deus”. A minha resposta é: “Não estou aqui para julgar, mas para escutar”. Por outro lado, enfatizo que Deus sabe o que queremos dizer, mesmo sem falarmos. O Deus que sonda o coração, também lê os pensamentos. No lindo salmo 139, o salmista diz:
“Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me sento e quando me levanto; de longe conheces os meus pensamentos. Observas o meu andar e o meu deitar e conheces todos os meus caminhos. A palavra ainda nem chegou à minha língua, e tu, Senhor, já a conheces toda.” (Sl 139.1,4)
É justamente por sofrerem em silêncio, caladas, que muitas pessoas — por vezes crentes sinceros, mas mal informados biblicamente — estão desenvolvendo crises depressivas e outras formas de adoecimento psíquico e até mesmo físico.
Lembro de um curso de psicossomática que fiz na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. O curso baseava-se praticamente na discussão de casos que eram apresentados a partir dos atendimentos que os alunos faziam com os pacientes nas enfermarias do hospital.
A banca era formada por psicólogos, psicanalistas e médicos de notório saber. Lembro de um caso apresentado sobre uma paciente que desenvolveu uma úlcera gástrica em grau bem avançado. Na apresentação desse caso, foi destacado que o relato da paciente estava repleto de cenas traumáticas: situação de pobreza na infância, abuso sexual também na infância e relacionamentos abusivos e violentos na vida adulta. A paciente disse que sempre enfrentou tudo sozinha e em silêncio, porque não tinha com quem falar
No livro “Quando a alma fala através do corpo”, os autores Hans Morschitzky e Sigrid Sator dizem que um dos fatores psíquicos que atuam no desenvolvimento de problemas gastrointestinais é o desenvolvimento inadequado dos afetos, tais como aborrecimentos não elaborados, raiva intensa, separação e forte hostilidade (2017, p. 148, Ed. Vozes). Não tem jeito. Onde o silêncio impera, o corpo acaba gritando.
Mas, e a paciência que Tiago diz que Jó possuía? Do que ele estava falando?
É certo que Tiago não estava falando da paciência de quem sofre calado e resignado. A palavra traduzida por paciência, é upomone, no grego, cujo sentido etimológico advém de: ὑπό (hupó) = “sob”, “debaixo” e μένω (menō) = “permanecer”, “ficar”, “perseverar”. Nesse sentido, o sentido é suportar, perseverar, aguentar firme, mesmo sob pressão ou sofrimento.
Upomone é usada no grego com o sentido de perseverança diante das adversidades. Tem a ver com resiliência. Nesse sentido, e tão somente nesse sentido, Jó foi paciente.
Não porque se calou, não porque aceitou tudo de cabeça baixa, mas porque permaneceu em pé quando tudo desabava à sua volta.
Jó gritou, amaldiçoou o dia do seu nascimento, confrontou seus amigos — chamando-os de “conselheiros de araque” (Jó 16.2 – Bíblia A Mensagem) — mas também clamou pela misericórdia Deus.
Sofreu — sim —, mas não se resignou. E é exatamente aí que mora a lição: sofrimento que não se exterioriza pela fala apodrece por dentro. Dor silenciada vira doença. Jó foi paciente porque foi honesto com sua dor.
E nós só seremos verdadeiramente resilientes quando entendermos que pedir ajuda, falar, chorar e protestar diante do absurdo da vida não é fraqueza, não é falta de fé, não tem nada a ver com blasfêmia contra Deus.
Calar pode ser um tipo de morte; falar é o começo da cura.
A dor da alma não pode ficar encubada. Precisa ser compartilhada. Se você precisa falar, busque ajuda e fale tudo o que você estiver sentindo.