Artigo

O Éden se repetiu várias vezes!

Nos estudos bíblicos, o jardim do Éden é como o evento-matriz do projeto da criação. Jesus fez referência “ao princípio” como esse projeto divino sendo a matriz que vem desenhar o que deveria ser a criação (Mateus 19.8, a NVT, traduz como propósito original).

 

Adão e Eva foram criados como seres livres, dentro de seu espectro finito, ainda que não autônomos, isto é, sem qualquer dependência externa. Como ser ético livre, mas heterônomo (do grego heteros, outro + nomos, norma), o ser humano foi criado com capacidade de tomar decisões – ser ético e responsável pelas suas escolhas.

 

No projeto original, temos a fonte dos referenciais éticos em Deus que, em minha hipótese, pela viração do dia Deus iria dialogando com Adão e Eva buscando orientar sobre seus passos, suas decisões, a partir do que seria o propósito original dEle para a criação. Diretamente conectados com o Criador iam modelando sua escala de valores que iriam referenciar suas decisões, sua natureza, seu modo de conviver e de viver.

 

Ao tomar do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (no campo da ética seria o certo e o errado), se rebelaram querendo ser como Deus conhecendo o bem e mal por sua própria conta. São desligados da convivência com o Criador e ficam sem conexão com ele (Gênesis 3.22,23). Foi uma declaração de independência contra o próprio Criador para dirigirem suas vidas como quisessem; como eram livres, mas não autônomos, continuaram dependentes de uma fonte externa para suas decisões escolhas – a serpente, Satanás – que vai atuar por meio da janela dos sentimentos (Gênesis 3.6, árvore boa, agradável e desejável) que envolveria a construção da estrutura mental, emocional, verbal e não-verbal, intuitiva, relacional etc. que estava antes sob a supervisão do Criador. Temos aqui o PRIMEIRO ÉDEN.

 

Mas, a história de rebelião não para nesse ponto da linha do tempo. Vai prosseguindo e se aprofundando e é nisso que tenho chamado de replicação do evento da rebelião do Éden em mais três momentos da história humana, afastando cada vez mais a humanidade de seu Criador em busca de aprofundar a sua declaração original de independência. Ao indicar estes momentos, de forma nenhuma estou afirmando que são períodos totalmente perniciosos e que devem ser rejeitados, apenas estou afirmando que, em cada período, temos a busca por mais autonomia da humanidade.

 

O SEGUNDO ÉDEN ocorreu durante o período da Modernidade, em que temos o ser humano pensando como Deus, ao buscar a soberania da verdade na razão. Depois buscando agir como Deus, com o pragmatismo utilitarista, e na tecnologia, ainda que primitiva, com as Revoluções Industriais e início da informatização nos idos dos anos 1980, 1990. Assim, o foco era, e ainda é, PENSAR E AGIR/CRIAR COMO DEUS. Alguns representantes deste movimento podem ser: Descartes, Kant, Bacon, William James.

 

Aqui a pessoa orgânica inserida em seu contexto seja familiar, social, religioso, político, que era envolvida e respondente ao seu ambiente, dá agora lugar à unidade pessoal, conhecida assim mesmo - como indivíduo. Descartes em vez de dizer “Pensamos...” afirma “Penso, logo existo!”. Para Kant, a razão passa a ser fonte da busca da verdade e dos valores. Francis Bacon passa a valorizar a experiência, William James a ação, a utilidade. Um passo a mais, temos o desenvolvimento científico e as Revoluções Industriais. A pessoa começa a ser individualizada e na Modernidade o mundo foi desencantado, perdendo “seus aspectos místicos, sagrados e proféticos, por causa da ciência e técnicas contemporâneas que precisam de uma natureza abstrata e vazia para ser controlada pelo pensamento racional” (Olgária Matos). A Ciência passa a ser a esperança para a solução de todos os dilemas e problemas humanos.

 

Com o advento das duas Grandes Guerras Mundiais que desolou a Europa, a esperança desapareceu surgindo a valorização ao que sobrou – a existência humana no tempo do “aqui e agora”, que encontrou terreno fértil para se desenvolver. A fonte da razão da vida passa a ser a existência (Existencialismo), que seria uma espécie de efeito tardio do Romantismo que não havia “pegado” quando surgiu.

 

Une-se a isso o individualismo que fortalece o relativismo que vai tocar diretamente nas definições dos valores éticos.

 

Esse cenário, diante da queda provisória do Socialismo e do muro de Berlim, germina o surgimento do TERCEIRO ÉDEN com a Pós-modernidade (Hipermodernidade, Lipovetsky), levando o ser humano a agir e sentir como o próprio Deus. Agora ele é o próprio Deus que está morto. A verdade se torna ainda mais subjetiva, e o relativismo se torna não conceitual, que não precisa ser justificado. Há profunda crise dos valores universais e desaparecem as metanarrativas. É preciso superar o humano, meramente humano escravo decaído e conquistar o übermensch (“além humano”) como que uma nova aristocracia (Nietzsche). As chaves éticas para a leitura da vida, passam a ser especialmente a gratificação e bem-estar imediatos (Gerhard Schulze), em que a subjetividade, os desejos, paixões e impulsos internos agem como uma força ética irresistível. Assim vivemos em uma sociedade permissiva, sem normas que possam ser aplicadas de forma ampla, uma sociedade imediatista, sem passado e muitas vezes sem futuro, pois as pessoas vivem totalmente no presente e buscam o que é imediato e a sobrevivência apenas para hoje. Zeca Pagodinho com sua música “Deixa a vida me levar” canta “Fiz o que estava a fim de fazer […] meu coração mandou […] eu fiz”.

 

Ainda nesse período se fortalece a cultura como determinante da identidade da pessoa fazendo com que os valores e a realidade sejam finalmente reconhecidos como produto da construção social que se torna imperativa e inquestionável. A razão, a utilidade, ou qualquer outra fonte originária da verdade desaparece e se introjeta dando lugar ao sujeito subjetivo, desprovido de razão, de relacionamentos, de valoração pragmática e de utilidade, de qualquer transcendente, ou fonte externa para lhe dizer o que deve ou não fazer, faz o que seu “coração”, suas paixões determinam.

 

Assim, é possível legitimar o aborto, a transexualismo e gênero e suas mais variadas identidades como um “therian” ou mesmo a poligamia (poliamor, trisal). Agora se procura regulamentar esse direito seguindo-se uma agenda intencionalmente bem definida (já escrevi sobre isso aqui nesta coluna). Quem sabe logo a pedofilia poderá também ser legitimada como uma alternativa de orientação sexual.

 

Neste período, além de Nietzsche, temos Schopenhauer, Foucault, Judith Butler, como alguns dos representantes.

 

De forma paradoxal a tudo isso, surge agora, neste tempo em que vivemos, o QUARTO ÉDEN, que provisoriamente eu chamaria de Éden do tecnocentrismo e entretenimento, em que temos o humano reinando e controlando todos os aspectos da vida por meio da tecnologia, que se torna a sua esperança para a solução de todos os seus problemas. Começa a busca pela eternidade com o apoio da Inteligência Artificial, robotização. Paradoxalmente, por sua vez o ser humano se torna o buscador de sua razão de vida no entretenimento, distração e ausência de compromissos com o exterior de seu ser e a vida vai se tornando cada vez mais sem sentido. Ainda é tudo é muito recente e a descrição é provisória e não temos ainda a distância suficiente para descrevermos mais detalhes. Entre os representantes deste tempo presente temos as “Bigtechs” (grandes empresas de tecnologia), a mídia e as redes sociais.

 

Veja que tudo começou com uma declaração de independência contra o Plano da Criação e o Criador, que foi se aprofundando e se introjetando na natureza humana, chegando aonde estamos hoje.

 

No campo da Ética Cristã só é possível compreender os dilemas éticos contemporâneos se conseguirmos compreender essa trajetória em que as decisões humanas são produtos de uma natureza decaída que lhe vai dar suporte para suas escolhas e decisões.

 

Por isso mesmo é que sempre defendi que a salvação é mais do que fornecer um cartão magnético para dar garantir a entrada na Nova Jerusalém. A salvação é um meio, uma porta de entrada na nova humanidade que tem como referência o retorno ao Éden antes da rebelião para, a partir daí, buscar a promoção da reconstrução da vida, seu significado, seus valores como nova criação (II Coríntios 5.14-17).

 

Com o Evangelho há o desafio para a reconstrução da cultura levando-nos a abraçar o desafio de transformar a cultura em todas as suas dimensões, refletindo, por meio de nossa vida pessoal e pública, o Reino de Deus na terra, como nova humanidade, enquanto aguardamos a sua plena manifestação. É um chamado para os cristãos serem agentes de transformação em todos os aspectos da sociedade, buscando a justiça, a beleza, a retidão e a verdade de Deus no mundo.

 
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