Artigo

Sentir medo não é falta de fé

Vamos partir de uma premissa básica: todo mundo sente medo. O medo faz parte da existência, é inerente a ela, e não há como viver sem senti-lo. Trata-se de um sentimento instintivo e inato, indispensável à nossa autopreservação. Sem ele, por exemplo, os animais seriam presas fáceis para seus predadores.

 

Uma provocação: sendo o medo um sentimento natural e essencial para a preservação da vida, seria correto afirmar que sentir medo é pecado, ou falta de fé? No livro “Não Tenha Medo de Ter Medo”, Cecil Osborne diz que “O medo é um fator de sobrevivência inserido por Deus (...) um fator de sobrevivência com o qual chegamos ao mundo”. Sentir medo, portanto, não é pecado nem falta de fé: é condição inerente à existência humana.

 

Mas alguém pode contra-argumentar: “Se sentir medo não é pecado, como entender que a expressão ‘não temas’ aparece 366 vezes na Bíblia?” Duas possibilidades:

 

1. Seria para demonstrar, enfatizar e deixar claro que o medo faz parte da nossa vida?

 

2. Seria um convite para admitir e reconhecer o medo como forma de superá-lo?

 

A fé em Deus não é um escudo contra os problemas, mas uma força que nos capacita a enfrentá-los quando eles surgem. Isso está claro nas palavras de Jesus, quando Ele disse: “No mundo, vocês passam por aflições; mas tenham coragem: eu venci o mundo.” (Jo 16.33). É preciso entender que Deus não criou máquinas insensíveis, mas seres humanos (Gênesis 1.27) movidos pela razão e, sobretudo, pelas emoções. No livro “Inteligência Emocional”, Daniel Goleman afirma: “Nossa humanidade é mais evidente em nossos sentimentos.”

 

A prova bíblica de que sentir medo não é pecado aparece de modo muito claro na vida de alguns personagens bíblicos que tanto admiramos. Por exemplo: Abraão, o pai da fé, temeu pela própria vida e pediu a Sara que dissesse ser sua irmã, e não sua esposa (Gênesis 12.10-20; 20.1-2). Elias, após derrotar os quatrocentos profetas de Baal, fugiu para o deserto com medo de Jezabel (I Reis 19). Davi, o valente que derrotou Golias, expressou abertamente seus medos em muitos dos seus salmos (Salmos 23; 34; 55; 56, entre outros). Os discípulos de Jesus sentiram medo em diversas ocasiões. Até Jesus foi tomado por um medo profundo (Mateus 26.38-39). Será que somos melhores do que eles?

 

Cecil Osborne diz que “O medo pode ativar e disciplinar todos os recursos do organismo para enfrentar uma crise satisfatoriamente. Ele nos prepara para a luta ou a fuga e nos estimula a planejar o futuro, evitando sermos apanhados desprevenidos por desastres, falta de recursos ou pela nossa própria consciência.” O medo, portanto, desempenha um papel vital. No entanto, é muito importante ressaltar que sentir medo é bem diferente de viver amedrontado. Sentir medo é natural; viver amedrontado é patológico.

 

Ignorar ou disfarçar o medo não resolve; pelo contrário, só agrava a situação. O medo reprimido ativa defesas psicológicas que, em vez de proteger, intensificam a ansiedade e a angústia, gerando tensões físicas, como dores musculares, problemas cardiovasculares, distúrbios do sono, dentre muitos outros. Também pode contribuir para o surgimento de obsessões e fobias, que mascaram a verdadeira origem do medo.

 

O medo precisa ser reconhecido, acolhido e tratado, pois, quando ignorado, paralisa a vida. Com medo das emoções, muitas pessoas sabotam relacionamentos promissores. Com medo da frustração, deixam de explorar seu potencial. Com medo do futuro, andam em círculos, perdendo oportunidades de crescimento. Com medo do julgamento, escondem sua autenticidade e vivem aprisionadas por máscaras. Com medo do fracasso, desistem antes mesmo de tentar, anulando sonhos e possibilidades. Com medo da mudança, resistem ao novo e permanecem em zonas de conforto que se tornam verdadeiras prisões.

 

Enfrentar o medo é dar um passo decisivo rumo à liberdade. Reconhecer e enfrentá-lo é o caminho para avançar. O medo cresce quando recuamos, mas se dissolve quando o encaramos. Como disse Nelson Mandela: “Aprendi que coragem não é a ausência do medo, mas o triunfo sobre ele. O homem corajoso não é aquele que não sente medo, mas aquele que conquista esse medo.”